Vivemos sob a égide de uma Constituição enunciada cidadã, mas
passadas duas décadas da proclamação da carta magna de 1988, a cidadania
no Brasil ainda está longe de ter alcançado estabilidade. Pior,
conquanto ela tenha caído literalmente na boca do povo e se transformado
na mais alta expressão do discurso democrático brasileiro, parece haver
um desconhecimento coletivo acerca de sua correta definição e, por
conseguinte, uma distorção no seu alcance esperado.
Tornou-se costume, por exemplo, associar os adjetivos cidadão e
cidadã exclusivamente à garantia de direitos, tendo o uso renitente dos
termos abandonado por completo a dimensão da cidadania como um dever de
participação, decorrente da natureza associativa da pessoa humana e da
parcela individual de responsabilidade com o bem comum que onera cada um
de nós. Desaparece assim a figura do cidadão revolucionário apresentada
por Giuliano Grifò como sendo aquele que resiste ativamente aos
obstáculos impostos ao exercício de sua cidadania[1],
ou ainda, a atividade fundamental da Ação, definida por Hannah Arendt
como a capacidade de começar algo novo que caracteriza o verdadeiro
cidadão.[2]
Entende-se por cidadania o reconhecimento e a promoção, por parte do
Estado, de certos direitos dos indivíduos que o integram, acrescidos de
um conjunto de obrigações de cada cidadão para com os demais, devido ao
princípio da solidariedade natural característico das sociedades.
Conforme ensina Dallari, “a cidadania expressa um conjunto de
direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da
vida e do governo de seu povo[3]”.
Tais direitos têm assumido historicamente formas distintas em razão dos
diferentes contextos temporais, espaciais e culturais, revelando que a
cidadania não obedece a uma sequência única, lógica e determinista, mas
sim a um conceito e uma prática próprios que variam de acordo com o
Estado-Nacional e a época observada. Assim, ensina Pinsky que ser
cidadão no Brasil é diferente de ser cidadão em outros países, não só
pelas normas que definem a titularidade ou não da cidadania, mas também
pelos direitos e deveres que caracterizam o cidadão nas diferentes
localidades[4].
Não obstante as diversas interpretações acerca da cidadania nos
diferentes Estados e momentos históricos, clássico é o desdobramento do
sociólogo britânico T. H. Marshall, que, analisando a evolução histórica
da cidadania no Reino Unido, desenvolveu a distinção entre as três
dimensões da cidadania, civil, política e social, de forma que o cidadão
pleno seria àquele titular das três categorias de direitos
correspondentes.
Os direitos civis seriam àqueles que têm como fundamento a liberdade
individual. Assim seriam direitos civis o direito à vida, à liberdade, à
propriedade, à igualdade perante a lei (formal), o devido processo
legal. Correspondem à concepção liberal clássica, ou seja, constituem-se
como limitações impostas ao poder soberano dos Estados, garantindo as
relações civilizadas entre os indivíduos bem como a própria
sobrevivência do Estado.[5]
Os direitos políticos ou a dimensão política da cidadania corresponde
à participação do cidadão nas decisões do governo e pressupõe a idéia
de auto-administração popular. É o poder que cada cidadão tem de decidir
sobre a escolha das autoridades públicas, o direito de votar, de ser
votado, de manifestar-se publicamente e de organizar-se em partidos. São
direitos individuais exercidos coletivamente.
A terceira dimensão da cidadania narrada por Marshall é a dimensão
social, ou ainda, os direitos sociais. Nas explicações de Carvalho, “se
os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos
garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais
garantem a participação na riqueza coletiva[6]”,
assim, são direitos sociais o direito à educação, à saúde, à moradia,
ao lazer, ao trabalho, à assistência social. São direitos pautados no
reconhecimento da igualdade material entre os indivíduos e sua
efetivação depende de um Estado Provedor eficiente.
Impende destacar que a teoria de uma cidadania tridimensional plena
proposta pelo sociólogo britânico não contempla apenas um conjunto de
direitos. A efetivação desses direitos só seria possível mediante uma
cooperação mútua entre Estado e indivíduos, de maneira que, a cidadania,
em última análise, seria um conjunto de direitos e deveres civis,
políticos e sociais os quais devem ser garantidos e fomentados por
todos. Nesse sentido, ensina Bittar que a cidadania não se restringe a
delegação ao Estado da tarefa de promover a justiça social, concepção
eivada nas idéias de assistencialismo e paternalismo, mas compreende uma
postura ativa dos cidadãos, uma vez que são eles que possuem as
condições para promover a transformação de sua realidade[7].
Ainda que o ideal de cidadania plena possa ser estendido a todos os
países de tradição ocidental, a construção desse ideal não obedeceu
sempre aos mesmos caminhos, com desvios e retrocessos em cada realidade
específica investigada.
No Brasil, o entusiasmo que emergiu da pretensa democratização
trazida no bojo da Constituição cidadã de 1988 logo fora apaziguado pela
constatação de graves injustiças e iniqüidades sociais, oriundas de um
processo histórico de construção da cidadania que tem como
característica um modelo de Estado eminentemente assistencialista.
Se por um lado a carta constitucional de 1988 introduziu ampla
evolução nas dimensões civil e política da cidadania brasileira mediante
a garantia das liberdades individuais e da participação no governo, é
visível que tal evolução não se procedeu de maneira análoga quanto aos
direitos e garantias sociais. Problemas como a violência urbana, o
analfabetismo, a carência nos serviços de saúde, de saneamento básico, o
desemprego, continuam sem solução.
Nas palavras de TOSI, convive-se ao mesmo tempo com a existência de
amplas liberdades democráticas e de amplas desigualdades sociais[8],
o que nos leva à inquietações sobre que é a cidadania brasileira, por
que a garantia de certos direitos não gera automaticamente a efetivação
de outros e por que a idéia de uma cidadania como dever de todos tende a
ser esquecida na nossa sociedade?
2. CIDADANIA ANTIGA E CIDADANIA MODERNA
Antes de nos aventurarmos pelos caminhos da construção da cidadania
brasileira, convém de início, conhecer um pouco mais sobre as origens do
objeto investigado, e nesse sentido, ainda que não se possa afirmar que
a cidadania como conhecemos hoje representa uma continuidade do mundo
antigo, é forçoso admitir que as idéias referentes à participação
popular nos destinos da coletividade e à garantia das liberdades
individuais forjadas na tradição greco-romana constituíram os alicerces
da cidadania contemporânea.
Durante toda a antiguidade e boa parte da Idade Média, as concepções
acerca da cidadania estavam vinculadas a uma visão naturalista da
política, ou seja, tudo era pensado em conformidade com uma ordem social
cósmica, hierárquica e imutável, na qual os indivíduos não eram vistos
como sujeitos de direitos. Nessa perspectiva, ensina TOSI que
predominava a concepção objetiva do direito, “definido como uma relação
fundada não sobre a vontade dos indivíduos, mas sobre o que
objetivamente era devido nas relações entre os sujeitos”. Assim, nesse
período não se pode falar numa cidadania plena, visto que o indivíduo
tinha mais deveres para com a sociedade do que direitos a serem
salvaguardados[9].
Contudo, tal cenário apresentou algumas exceções, nas quais os
sujeitos gozavam de um papel mais relevante na sociedade, como no caso
da polis (cidade-estado) grega. Sobretudo nos períodos
democráticos atenienses, já havia o reconhecimento da existência de uma
categoria de cidadãos livres e iguais, titulares do direito de
participação direta e ativa nas decisões políticas da cidade, embora
essa condição ficasse restrita a um número pequeno de sujeitos, os
homens livres e adultos, pertencentes a famílias tradicionais da polis.
Os antigos gregos acreditavam que o uso do logos (razão),
seria o elemento de distinção entre homens e animais, e exatamente nisso
residiria a dignidade humana, que conforme ensina RABENHORST não se
manifestava da mesma forma em todos os indivíduos, variando de acordo
com a posição social de cada um[10].
Assim sendo, mulheres, escravos, crianças e estrangeiros não possuíam
cidadania “por serem considerados inferiores em virtude de sua própria
natureza”.
Explica Grifo que na Grécia Antiga a cidadania estava umbilicalmente vinculada à associação civil dos polities (cidadãos) que constituía a polis, de forma que, a condição de cidadão só poderia ser pensada em função da cidade, na cidade e para a cidade. Fora da polis não havia indivíduos plenos e livres, não havia cidadania[11].
Nas cidades-estado, a cidadania transmitia-se comumente por vínculos
sanguíneos passados de geração em geração, contudo, não se pode
estabelecer um critério universal para o reconhecimento do pertencimento
à comunidade, mas é certa a tendência geral de fechamento do acesso à
condição sócio-política oferecida pela polis.
Essa tendência ao fechamento fez surgir um número significativo de
indivíduos excluídos, que participavam da sociedade com seu trabalho mas
não integravam o conjunto dos cidadãos, assim, conforme Pinsky “o
processo inclusivo de constituição das comunidades cidadãs forjou-se
simultaneamente a um brutal processo de exclusão interna[12]”.
O caráter exclusivista da cidadania nas cidades-estado, com o tempo,
levou à fragilidade e instabilidade desse tipo de organização social,
que aos poucos foi sendo substituída pelos grandes impérios, como
conseqüência natural do amplo processo de integração que se observava na
época. Nesse cenário, surge o império romano, oriundo de uma
cidade-estado cuja cidadania era mais abrangente do que as demais.
No que diz respeito à cidadania o imperialismo romano introduz
características distintas daquelas encontradas entre os gregos. Durante
seu processo de expansão militar pelo Mediterrâneo, os romanos se valiam
de uma poderosa política de assimilação, que na medida em que
conquistava ia concedendo a civitas romana aos vencidos.
O fundamento desse cosmopolitismo romano se deve a concepção
filosófica dos estóicos a respeito da unidade do gênero humano. Explica
Rabenhorst que para o estoicismo todos os homens seriam livres e iguais
por sua idêntica capacidade de pensar, sendo essa igualdade “assegurada
por uma lei natural superior às leis artificiais da polis[13]”,
daí por que seriam membros de uma mesma comunidade. Tal comunidade
teria um caráter de fraternidade universal, no qual deuses e homens
seriam cidadãos sujeitos a uma mesma lei natural. Foi a primeira
aparição de uma cidadania cosmopolita.
Contudo alerta Grifo que o caráter expansionista da cidadania romana
não é fruto exclusivo do pensamento estóico, mas adquire realidade
também no jurista romano e no direito civil do império[14].
Nesse sentido, vale lembrar a Constituição Antoniana de 212 d.C, um
conjunto de normas de caráter pragmático elaboradas pelo imperador Cesar
Marco Aurélio Severo Antonio Augusto, conhecido como Caracalla, que
estendeu a cidadania a todos os habitantes livres do império.
Mas em que consistia a cidadania romana? Para os romanos, a civitas
compreendia num único conceito a cidadania, a cidade e o Estado, só
podendo haver esse coletivo se houvesse antes, cidadãos. Assim, explica
Pinsky que “se para os gregos havia primeiro a cidade, polis, e só depois do cidadão, polites, para os romanos era o conjunto de cidadãos que formava a coletividade[15]”.
O cidadão romano possuía o ius civile, que compreendia o
direito de votar e ser votado, o direito de comercializar, o direito de
casar segundo as leis romanas, o direito de testar, adquirir
propriedade, adotar, dentre outros. Ser civis (cidadão) no
império romano era antes de tudo ser livre, ou seja, não estar submetido
ao domínio de nenhum outro e ser capaz de agir conforme seu próprio
juízo, gozando do reconhecimento de direitos decorrentes dessa condição.
Sobretudo no período conhecido como o Principado Romano, construído a
partir do século I a.C, a concessão da cidadania romana alastrou-se de
forma a alcançar quase a totalidade dos habitantes do império.
Poder-se-ia conceder tal privilégio, v.g., aos que transferissem seu
domicílio para Roma, aos que prestassem o serviço militar, ou ainda por
força de lei, como a Lex Julia de 90 a.C que concedeu a cidadania romana a todos os latinos habitantes do império.
Tamanha flexibilização, se por um lado representou um avanço, por
outro gerou um efeito negativo no que tange à cidadania romana. Ensina
Pinsky que o status privilegiado de cidadão romano foi perdendo
importância e o princípio da igualdade de direitos entre todos foi sendo
paulatinamente abandonado diante do fosso existente entre ricos e
pobres[16].
Surgia daí uma cidadania estratificada que separava as pessoas em
função das classes sociais. Estrangeiros e escravos não eram
considerados como iguais, e mesmo dentre os cidadãos livres não havia
igualdade, fazendo-se distinção entre os patrícios e os plebeus.
Os patrícios ou “homens bons” eram os cidadãos plenos, representantes
das famílias tradicionais romanas. Formavam oligarquias rurais e
detinham o monopólio dos cargos públicos. Já os plebeus eram os
camponeses de poucas posses, os artesãos e os comerciantes, pessoas
comuns com possibilidades mínimas de participação nas atividades
políticas. Surgiam assim duas categorias de cidadãos, os cidadãos
ativos, detentores do direito de participar das atividades
político-administrativas e ocupar os cargos públicos, e os simplesmente
cidadãos. A luta pela igualdade de direitos entre plebeus e patrícios
foi a grande mola de impulso para o desenvolvimento da cidadania no
império romano.
O pensamento estóico que fundamentou o aspecto amplo e flexível da
cidadania romana estabeleceu, ao menos inicialmente, as bases do
jusnaturalismo moderno que caracterizou o amplo processo de
transformação antropocêntrico advindo da Idade Moderna a partir do
século XVIII.
A modernidade instaura uma ruptura na sujeição do homem a uma ordem
divina, objetiva e imutável característica do mundo antigo e medieval,
operando a passagem para uma concepção subjetiva dos direitos, fundada
na igualdade universal de direitos, na autonomia do indivíduo, na
dignidade humana, num direito natural e no contrato social. Contudo, há
de se destacar que não se trata de uma mudança completa de paradigmas,
mas sim numa reinterpretação de conceitos já existentes (direito, poder,
liberdade), que assumem novos significados a partir dos processos de
secularização, racionalização e individualização das idéias.
A concepção moderna de cidadania foi influenciada diretamente pelo
movimento intelectual e cultural francês denominado Iluminismo, que
propunha uma nova maneira de conceber a organização da vida em
sociedade, a partir de figuras como Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau
e Kant. Pode-se destacar três elementos estruturais do pensamento
Iluminista que contribuíram para a formação da cidadania moderna: o
individualismo, os direitos naturais, e o pacto social.
O individualismo parte da valorização do homem como sujeito de sua
própria história. O ser humano passa a ser tido como possuidor de certo
poder e autonomia para interferir no mundo, e tudo aquilo que diz
respeito à sociedade é considerado produto da ação humana.
Em sendo o homem sujeito de sua própria história, acreditava-se ser o
homem oriundo de um estado de natureza anterior ao Estado Civil, no
qual todos gozariam igualmente de direitos naturais intrínsecos e
ilimitados. Com o escopo de preservar tais direitos, os homens comporiam
livremente um pacto social para a formação de uma sociedade civil, de
forma a garantir o gozo dos direitos individuais presentes no estado de
natureza, sendo essa a única função admitida ao Estado.
O pensamento liberal iluminista foi de fundamental importância no que
diz respeito à justificação ideológica das grandes revoluções liberais
(ou burguesas) ocorridas entre os séculos XVII e XVIII: Declaração de
direitos inglesa de 1689; as Declarações de direitos americanas
(especialmente a declaração do Estado da Virgínia em 1777); e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de
1789. Contudo, destaque-se que os benefícios dessa igualdade universal
de direitos não atingiram a todos indistintamente.
Conforme ensina Dallari muitos dos preceitos contidos nas Declarações
burguesas foram logo esquecidos, e um cenário de desigualdades
instalou-se na Europa moderna[17].
As declarações de direitos das colônias americanas excluíam os
escravos dos direitos de cidadania. A Constituição Francesa elaborada
sob os alicerces da declaração de 1789 estabelecia uma série de regras
que deturpavam completamente a idéia de cidadania, como a manutenção da
monarquia hereditária e a exclusão das mulheres como sujeito de
direitos. Recuperou-se a infeliz distinção romana entre cidadãos e
cidadãos ativos. Apenas cidadãos ativos possuíam direito à participação
política, e só teriam tal condição homens adultos e ricos, excluindo-se
pobres e analfabetos.
Vale lembrar que os direitos de cidadão também não valiam para as
relações internacionais. Na medida em que a Europa proclama a
universalidade dos direitos, ganhava força o movimento de colonização e
exploração comercial dos não-europeus, que ofereceu sustentação à
acumulação primitiva do capital mediante a pilhagem de recursos dos
povos colonizados e reintrodução da escravidão.
Se por um lado a cidadania moderna rompeu definitivamente com a
figura do súdito, introduzindo a era subjetiva dos direitos, agora ditos
universais, por outro se apresentou de forma excludente, diferenciando
cidadãos ativos (com posses) e cidadãos passivos (sem posses). A
cidadania não era um símbolo da igualdade de direitos e participação
política entre todos, mas sim um atributo único de um número restrito de
privilegiados.
As inúmeras desigualdades econômicas e sociais advindas do modelo
liberal de cidadania e do sistema capitalista que se anunciava
impulsionaram a partir do século XIX o surgimento do socialismo,
corrente política e filosófica que exigia uma ampliação e
universalização efetivas da cidadania burguesa.
A luta socialista envolvia a inclusão dos cidadãos excluídos na
titularidade dos direitos civis e políticos, bem como o advento de um
novo conjunto de direitos, até então desconhecidos ao liberalismo, os
direitos econômicos e sociais, de caráter eminentemente coletivo, que
pressupunham um Estado intervencionista e provedor, ao contrário do
Estado mínimo garantidor exclusivo das liberdades individuais. Surge
assim a dimensão social da cidadania.
3. OS CAMINHOS DA CIDADANIA BRASILEIRA
Antes de iniciarmos o referido estudo, há de se considerar que,
quando da gênese do Estado brasileiro no início do século XIX, há tempos
o mundo vivenciava o processo de expansão da cultura européia, pelo
qual a história universal começava a se confundir com a história de uma
civilização específica. Assim, ao passo em que a emancipação do homem e
as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade se consolidavam na
Europa, os povos periféricos não-europeus eram excluídos desse processo,
o que acabou sendo elemento decisivo nas características da cidadania
no Brasil.
Do chamado descobrimento em 1500 até o fim do período colonial em
1822 o Brasil se apresentava como um Estado absolutista e escravocrata,
cuja economia era essencialmente monocultora e latifundiária, e quase a
totalidade da população era analfabeta. A colonização portuguesa no
Brasil teve como características principais a conquista dos povos
seminômades nativos, o que facilitou a dominação e o extermínio, o cunho
comercial e lucrativo da exploração, e a instituição da escravidão.
O poder era centralizado e concentrado na realeza, cujo apoio
político provinha dos grandes proprietários de terras e escravos, da
alta administração pública e da burguesia comercial metropolitana. A
vontade do monarca soberano se impunha sobre os súditos e subordinava
todos os aspectos da vida pública. Inexistia um poder público que
garantisse a igualdade de todos e a garantia de direitos. Notadamente o
fator mais negativo para a cidadania nesse período foi a escravidão, que
penetrava em todas as camadas sociais e era amplamente aceita por
todos.
Se escravos não eram considerados cidadãos, também não se pode
considerar os senhores de terras como tais, visto que julgavam-se acima
do Estado e utilizavam da justiça como instrumento de poder pessoal.
Ensina Carvalho que entre escravos e senhores existia ainda uma
população livre, que igualmente não exerciam direitos de cidadania,
devido à completa dependência dos latifundiários[18].
Assim, não se pode falar numa cidadania no período colonial brasileiro,
visto que os direitos civis e políticos beneficiavam pouquíssimos, e os
direitos sociais ficavam a cargo da igreja e do paternalismo dos
senhores de terras.
Com a proclamação da independência em 1822 a cidadania brasileira não
mudou. A herança trazida do período colonial era veemente, e o processo
de revolução não resultou de uma luta política armada como nas
revoluções francesa e americana, mas ao contrário, resultou de uma
negociação entre as elites coloniais nacionais e a dinastia Bragança.
Tanto, que os setores dominantes optaram por um modelo monárquico, para
que através da manutenção do vínculo com a metrópole o poder das elites e
a ordem social vigente fossem mantidos.
O texto constitucional imperial de 1824 demonstrava inúmeros limites à
cidadania. Do ponto de vista dos direitos civis, a população escrava
não era considerada como sujeitos de direitos. Do ponto de vista dos
direitos políticos, havia uma separação entre cidadãos, como sendo
aqueles portadores apenas dos direitos civis, e cidadãos ativos,
portadores também de direitos políticos.
O sistema eleitoral era baseado no voto censitário, ou seja, no
critério da renda. Havia um limite mínimo de renda para que o indivíduo
tivesse acesso aos direitos políticos, o que limitava a cidadania
política apenas àqueles indivíduos dotados de posses consideráveis.
Outro ponto negativo advindo da Constituição de 1824 foi a criação de um
Poder Moderador, exercido pelo imperador e responsável pela manutenção
do equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na
prática, o poder mantinha-se concentrado nas mãos de uma só pessoa.
Se formalmente a independência brasileira representou um avanço, pelo
menos no que diz respeito aos direitos políticos, do ponto de vista
material a população não possuía consciência do valor do voto, e as
eleições não tinham o caráter de exercício da cidadania, mas sim de
submissão a um chefe político local.
Já os direitos sociais ainda não haviam aparecido de forma explícita,
embora as camadas pobres da sociedade e os escravos já demonstrassem
insatisfação contra suas condições.
Em 1850 é abolido o tráfico de escravos, e embora o abolicionismo
lento e gradual tenha alcançado seu apogeu em 1888, os libertos ainda
carregavam a violência simbólica expressada nos estigmas e preconceitos
que vinculavam o trabalho manual à escravidão. Aos ex-escravos não foi
oportunizada nenhuma alternativa de sobrevivência em liberdade, e a
marginalização e exclusão social passam a fazer parte de sua história.
Em 1881 a Câmara dos Deputados aprova a lei que introduz o voto
direto, acabando com a distinção entre eleitores de primeiro e segundo
grau. Contudo, a medida restringiu ainda mais o voto censitário mediante
o aumento do limite mínimo de renda para votantes. No mais, exigia-se
prova da alfabetização do eleitor, o que representou grave limitação ao
exercício dos direitos políticos, já que 90% da população da época era
analfabeta.
A primeira república é instalada em 1889, mas os aspectos negativos
herdados do período imperial e presentes até 1930 impediram o progresso
da cidadania no país. A federalização introduzida fortaleceu o poder das
elites locais e estimulou a formação das oligarquias estaduais. A
proibição do voto do analfabeto e a determinação do voto facultativo e
descoberto contribuíram para o controle da população por parte dos
coronéis e chefes políticos locais.
A alienação política não foi o carma principal do período
republicano. O desenvolvimento da cidadania encontrava obstáculos também
no campo dos direitos civis, uma vez que o legado negativo do período
escravocrata, a grande propriedade rural coronelista e um Estado
comprometido com o poder privado desconstruíam as noções de igualdade
entre todos e respeito às leis.
Se os direitos civis e políticos eram precários, a situação dos
direitos sociais não era animadora. No campo dos direitos sociais o
operariado industrial dos grandes centros urbanos, formado por
ex-escravos e imigrantes e influenciados pelo anarquismo europeu,
organizava-se e começava a se levantar em favor de uma legislação
trabalhista, direito de férias, regulamentação de jornadas.
A Constituição Republicana de 1891, de forte tradição liberal,
impedia uma maior interferência do Estado na regulamentação das relações
trabalhistas, que deviam ser resolvidas inicialmente em âmbito privado.
Nos dissídios de maior repercussão, o Estado atuava sempre no sentido
da proteção do patronato. A assistência social ficava a cargo de
irmandades religiosas e associações particulares, e só em 1919, por
ocasião do ingresso do Brasil na Organização Mundial do Trabalho, foi
regulamentada a responsabilidade dos empregadores pelos acidentes de
trabalho.
A partir de então alguns avanços foram anotados. A criação do
Conselho Nacional do Trabalho em 1923 e da Caixa de Aposentadoria e
Pensão para os ferroviários, a lei de férias em 1925 e o Código de
Menores em 1927. Contudo, os direitos sociais conquistados não foram
efetivados na prática, sobretudo pelo boicote por parte do patronato.
Até 1930 não havia cidadãos brasileiros organizados politicamente,
nem tampouco um sentimento nacionalista consolidado. Os movimentos que
se sucederam desde o início do período imperial possuíam características
eminentemente reativas e não propositivas, estimuladas por identidades
locais. É o que Carvalho denomina como cidadania em negativo[19].
O marco no desenvolvimento da cidadania brasileira foi o movimento
revolucionário de 1930, que corresponde a única tentativa de
manifestação popular ativa, organizada e de amplitude nacional da
história do Brasil. A participação das massas populares e o sentimento
nacionalista dos cidadãos deu ao movimento um caráter diverso da
proclamação da república, representando assim uma maior ampliação na
noção de cidadania. Nesse período, multiplicaram-se os sindicatos e os
partidos políticos, e o cenário político brasileiro atingia vários
grupos sociais, como operários, classe média, militares, industriais e
oligarquias dissidentes.
Em 1937 o golpe do Estado novo de Vargas introduziu no país um regime
ditatorial que representou um avanço em termos de direitos sociais e
um retrocesso quanto aos direitos civis e políticos, devido à onda de
violações às garantias individuais.
O projeto nacional-desenvolvimentista do governo Getúlio Vargas
baseado num modelo de desenvolvimento econômico que privilegiava a
industrialização fomentou uma séria de mecanismos de fortalecimento do
trabalhador urbano-industrial. Em 1930 foi criado o Ministério do
Trabalho; em 1932 foi instituída a jornada de 8 horas, regulamentado o
trabalho feminino e criada a carteira de trabalho e as Juntas de
Conciliação e Julgamento; em 1933 foi regulado o direito de férias; em
1940 adotado o salário mínimo; em 1941 foi criada a justiça do trabalho,
e em 1943 foi implantada a Consolidação das Leis do Trabalho.
O aspecto negativo de toda essa legislação social era a exclusão de
certas categorias de trabalhadores, como os autônomos, os domésticos e
os trabalhadores rurais, e também a vinculação dos direitos trabalhistas
a uma legislação sindical. Certos benefícios eram reservados apenas aos
sindicalizados, e essa não universalização dos direitos trabalhistas
representava um limite ao pleno exercício da cidadania.
Mediante uma postura populista o governo inverteu a ordem lógica dos
direitos de cidadania, que passaram a ser considerados privilégios
ofertados a determinadas categorias ao invés de verdadeiramente direitos
decorrentes de uma ação política independente, colocando os cidadãos
numa posição de dependência frente ao Estado, de cidadania passiva.
Com a queda de Vargas em 1945 e a convocação de eleições
presidenciais e legislativas o Brasil entra numa primeira experiência
democrática. A Constituição de 1946 manteve as conquistas sociais do
Estado Novo e assegurou os direitos civis e políticos. Até 1964 viu-se
uma intensa participação política dos mais diversos setores da
sociedade. Nesse período, foram criadas foram criadas várias
organizações como a União Nacional dos Estudantes, a Escola Superior de
Guerra, o Movimento de Educação de Base, o Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais e o Comando Geral dos Trabalhadores. No campo, os
pequenos produtores rurais organizam-se em Ligas Camponesas em defesa da
reforma agrária e do reconhecimento de uma série de direitos civis,
políticos e sociais. O embate político entre as massas rurais e urbanas,
impulsionado pelos movimentos de segmentos hierarquicamente inferiores
das Forças Armadas leva a uma reação golpista das classes dominantes
voltado à manutenção do pacto populista. Vem o golpe militar de 1964 e
com ele novo retrocesso no desenvolvimento da cidadania brasileira.
Os governos militares tinham como suporte ideológico a idéia do
desenvolvimento e da segurança nacional, e para tanto, lançaram no país
um regime autoritário e discricionário que restringiu ao máximo os
direitos civis e políticos na tentativa de enfrentar os “movimentos
subversivos”. Uma série de Atos Institucionais com força superior às
disposições constitucionais estabeleceu o novo ordenamento
jurídico-político do país e representou a radicalização máxima do
período ditatorial repressivo. Foram instituídas as penas de morte e de
banimento, a tortura tornou-se uma praxe, foi imposta a censura aos
meios de comunicação. Os direitos civis e políticos foram reduzidos a
zero.
Nesse momento sombrio para a cidadania brasileira alguns avanços no
campo dos direitos sociais funcionaram como alento. Em 1966 foi criado o
Instituto Nacional de Previdência Social e o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço; em 1974 foi criado o Ministério da Previdência e
Assistência Social.
Com o fim do regime ditatorial em 1974 o Brasil iniciou um processo
gradual em direção à democracia. De um lado, o governo ocupava-se em
eliminar os mecanismos restritivos do período militar, de outro, a
sociedade civil começava a se reorganizar e os movimentos populares
voltam a atuar. O auge desse novo período foi a campanha pelas eleições
presidenciais diretas em 1984, que ficou conhecida como o movimento das
Diretas Já.
A partir daí o país se colocou definitivamente nos rumos da
democracia política, e em 1988 foi elaborada a mais avançada carta
constitucional da história brasileira no que tange ao reconhecimento e
garantia dos direitos de cidadania, uma Constituição Cidadã. Em 1989 o
novo presidente da república foi eleito pelo voto direto e dois anos e
meio depois de sua posse, foi submetido a um processo de impedimento que
representou uma das manifestações cívicas mais importantes da nossa
história. De lá pra cá os direitos civis e políticos adquiriram uma
amplitude nunca antes atingida, no entanto, a efetivação dos direitos
sociais permaneceu num mar de incertezas, deixando à cidadania plena no
Brasil um conjunto problemático de obstáculos a serem superados.
4. CONCLUSÕES
A construção da cidadania brasileira não obedeceu a mesma ordem
lógica apresentada no modelo britânico de Marshall: direitos civis,
direitos políticos e direitos sociais. No Brasil, os direitos políticos
apareceram primeiro, os direitos sociais tiveram mais ênfase que os
demais, e os direitos civis só alcançaram sua consolidação a partir da
Constituição de 1988.
Porém, tal peculiaridade no desenvolvimento da cidadania no nosso
país não teve força suficiente para desatrelá-la de uma característica
marcante na história da cidadania ocidental desde a Grécia Antiga, o
caráter excludente, que dividiu os cidadãos em categorias tomadas em
função de seu poder econômico, sobretudo no que diz respeito à dimensão
social. Isto posto, pode-se identificar ao menos três categorias de
cidadãos brasileiros: os cidadãos privilegiados de primeira classe;os
simplesmente cidadãos, de segunda classe; e os não cidadãos.
A primeira categoria de cidadãos herdou sua condição plena de
cidadania das elites dominantes que estiveram à frente dos movimentos de
independência e proclamação da república no país. São invariavelmente
ricos, brancos e com formação acadêmica, e sempre conseguem atender a
seus interesses seja pelo poder econômico, seja pelo prestígio social de
que gozam. Para estes, os direitos de cidadania alcançam sua plenitude.
Têm suas liberdades individuais garantidas pela possibilidade de acesso
à justiça, possuem representação política ativa em razão do poder
econômico de que dispõe, e não dependem de um Estado provedor para ter
acesso a direitos sociais.
Na pirâmide da cidadania brasileira, abaixo dos cidadãos de primeira
categoria, colocam-se os simplesmente cidadãos. Representam a maior
parte dos cidadãos brasileiros e em geral confundem-se com a classe
econômica média. Possuem uma cidadania limitada, uma vez que, possuem
relativa consciência acerca de seus direitos, mas nem sempre dispõe de
meios para o seu exercício. Poucos são os que se aventuram num
participação política, e a maioria submete-se aos caminhos determinados
pela classe dominante.
Por fim, há os não cidadãos. São indivíduos completamente abandonados
pelo Estado e pela sociedade civil, cujos direitos decorrentes da
cidadania não são reconhecidos efetivamente e para quem a cidadania não
passa de um termo sem significado prático. É a parte da população
excluída dos serviços de educação e saúde pública, sujeita ao
desemprego, completamente alheia à vida política, desamparada pelos
sistemas de segurança e justiça, que recorrem à criminalidade como forma
de sobrevivência e inclusão social.
Essa estratificação é favorecida por aplicações distorcidas ou ainda,
não aplicação dos princípios de cidadania consagrados na Constituição
de 1988. Explica Dallari que os objetivos econômicos do neoliberalismo
brasileiro, presentes na carta magna como por exemplo a garantia do
lucro ilimitado e a integralidade do direito de herança, privilegiam os
interesses privados em detrimento dos interesses públicos, e por tal
razão, o exercício pleno da cidadania de algumas categorias esbarra
sempre na indiferença dos setores econômicos dominantes[20].
Existe um forte conservadorismo das representações sociais elitistas no
sentido da não expansão dos direitos de cidadania às classes
inferiores, como se estas últimas, necessitassem eternamente de um poder
orientador de suas ações.
Assim, a luta pela cidadania plena no Brasil é uma luta pelo direito
de existir enquanto igual, enquanto membro da sociedade, é a luta por
uma “cidadania simbólica”. E diz-se simbólica por que se contrapõe a
processos simbólicos de exclusão, visto que não há registros históricos
de algum grupo social que tenha sido totalmente apartado em termos
políticos, econômicos ou sociais. O que há na realidade é uma tentativa
histórica dos setores dominantes de legitimar seu status superior em
função da desqualificação dos outros no campo da igualdade. Pior, é que a
sociedade brasileira acaba corroborando essa desqualificação pela perda
sucessiva da capacidade de indignar-se perante a falta de cidadania de
certos grupos, naturalizando, por conseguinte, a estratificação dos
cidadãos.
Agrava esse quadro o caráter paternalista presente em toda a história
da cidadania brasileira. Ao contrário da Europa e Estados Unidos, onde a
construção da cidadania compreendeu tanto uma luta político-ideológica
(pela garantia legal de direitos) quanto uma luta simbólica (pelo
reconhecimento do idêntico valor de todo ser humano como sujeito de
direitos), no Brasil, a grande massa excluída assistiu a um processo de
doação de cidadania, orientada segundo a ideologia elitista, e que não
alcançou efeitos no campo prático. Assim, a cidadania brasileira
caminhou sempre no sentido de cima pra baixo, uma cidadania apenas
legal, mas nunca verdadeiramente real.
È fácil compreender por que a garantia de certos direitos no Brasil
não representou a efetividade de outros, ou melhor, por que a
democratização trazida no bojo da Constituição de 1988 e expressada nas
liberdades civis e políticas não foi suficiente para promover a
igualdade material dos cidadãos mediante um aparato de assistenciais
sociais. Por que a cidadania doada aos indivíduos excluídos não trazia
em sua essência uma reformulação profunda de valores, característica das
lutas simbólicas pela igualdade, mas sim um conservadorismo dominante
que via na pobreza um obstáculo ao seu próprio desenvolvimento.
Por tudo isso, tornou-se impossível vislumbrar no Brasil o aspecto da
cidadania como um dever de todos, uma vez que a mesma figurou sempre
como um conjunto de privilégios concedido pelas elites aos cidadãos em
negativo. Assim, ser cidadão brasileiro não é ser titular de direitos
civis, políticos e sociais, mas ser acima de tudo, um guerreiro em
defesa do direito a tê-los.
Fonte: http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=6358357210011267#editor/target=post;postID=8742155470276961912